A maioria dos espanhóis acredita que o principal risco de seu alimentos são os resíduos de pesticidas e as substâncias químicas. A maioria dos cidadãos da União Europeia pensa da mesma forma, segundo a última pesquisa Eurobarômetro sobre o assunto, publicada em 2010. Por outro lado, menos da metade da população se preocupa com o “maior problema alimentar que a Europa enfrenta”: a superabundância de calorias e a epidemia de obesidade que ela provoca, destaca Bernhard Url, diretor da Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA, na sigla em inglês). Nessa lista de percepções também aparecem em um nível inferior as intoxicações alimentares, que são “o maior perigo real” representado pela comida.

Esse veterinário nascido em Kapfenberg (Áustria) em 1961 ia ser fazendeiro, mas acabou se especializando em segurança alimentar. Dirige desde 2014 o organismo da UE encarregado de emitir estudos científicos sobre agentes patogênicos, contaminantes e outros compostos presentes nos alimentos, para que os políticos tomem decisões baseadas em evidências. Não é um trabalho fácil e muitas vezes eles são alvo de ataques, como aconteceu recentemente em relação ao glifosato, o herbicida mais utilizado do planeta. Em visita a Madri para uma reunião com a ministra espanhola da Saúde, Luisa Carcedo, Url reflete nesta entrevista sobre os medos infundados e os riscos reais representados pelos alimentos na Europa.

Pergunta. O que você come, o que não come e por quê?

Resposta. Como de tudo. Não tenho nenhum medo de comer algo porque o nível de segurança alimentar na Europa é muito alto. Como cada vez menos carne porque me preocupo com o bem-estar animal e porque acredito ser mais saudável. A forma como tratamos os animais é um espelho da maturidade da nossa sociedade e, do ponto de vista ético, acho que poderíamos melhorar mais.

P. O consumo atual de carne poderia ser combinado com um tratamento mais humano?

R. A questão não é se podemos nos dar ao luxo de manter o modelo atual, e sim se queremos. Teremos de alimentar 10 bilhões de pessoas no futuro próximo. Para isso, será necessário fazer pelo menos três coisas. Uma, ajudar os países em desenvolvimento. Muita produção agrícola se perde por falta de infraestrutura, logística e conhecimento. Segundo: na Europa, desperdiçamos 30% da comida. É um escândalo ético. O terceiro ponto é trocar nossos hábitos alimentares. Não podemos continuar consumindo tantas proteínas animais. A produção de gado consome muita energia, extensão de terra e água, e produz muitas emissões. Meu conselho é: coma menos animais e mais plantas. Isso seria saudável para a população, para o planeta e para 800 milhões de pessoas que vão para a cama com fome porque não têm o que comer.

P. Todo mundo pode ter acesso a essa dieta?

R. O acesso a alimentos frescos é um aspecto social fundamental. É também uma questão de desigualdade. Nos EUA há desertos alimentares onde é impossível encontrar alimentos frescos num raio de oito quilômetros, e a isso se soma a questão de saber se as pessoas podem pagar por eles. Na Europa também parece haver esses desertos, embora esse assunto não seja da competência da EFSA e, portanto, não tenhamos dados. As frutas e verduras orgânicas custam mais e há pessoas que não podem pagar por elas.

P. O orgânico é sempre melhor?

R. Em termos de segurança, não há diferenças. Em termos de nutrientes, provavelmente também não. A agricultura orgânica tem vantagens de sustentabilidade.

P. A agricultura orgânica sempre tem menos impacto no meio ambiente? Por exemplo, são usados compostos com cobre como pesticidas, que são tóxicos.

R. Em geral, sim. A forma como se usa o solo, como é feita a rotação de culturas, é muito mais natural. O uso de cobre é um assunto pelo qual temos nos interessado. Vemos problemas de contaminação por cobre para o meio ambiente e também para anfíbios, aves e outros organismos. É preciso estudar mais essa questão.

P. Qual é o maior problema alimentar que a Europa enfrenta?

R. O excesso de nutrientes. A obesidade. A sobrenutrição e a subnutrição no mundo desenvolvido são nossos maiores desafios.

P. Deveríamos nos preocupar com o conteúdo de fertilizantes ou produtos químicos nos alimentos?

R. Na Europa, todos os aditivos devem ser avaliados antes de sua aprovação. Todos os aprovados estão em uma lista e devem voltar a ser aceitos a cada 10 anos, depois de outra avaliação. O risco zero não existe, mas nesta área é muito, muito baixo. Os maiores perigos são as intoxicações alimentares, bacterianas e virais. Há possivelmente milhões de intoxicações por ano na Europa que poderiam ser prevenidas com higiene e controle. Em resíduos químicos, como pesticidas, por exemplo, estabelecemos limites máximos de resíduos, e fazemos anualmente um relatório europeu. O último indica que mais de 97% dos alimentos estão abaixo do limite máximo. Cerca de 50% não têm nenhum resíduo. Apenas 2,4% estão acima. A situação é muito boa. A única dúvida agora é sobre a possível ação combinada de produtos químicos. A EFSA estuda há anos esses efeitos conjuntos. Juntamente com a Holanda, vamos publicar os dois primeiros relatórios sobre efeitos combinados de resíduos de pesticidas em dois órgãos humanos, a glândula tireoide e o sistema nervoso. Ainda estamos trabalhando neles e, com base nos resultados, é possível que alguns limites máximos tenham de ser reajustados.

P. Há plásticos em nossa comida? Qual é seu efeito para a saúde?

R. Estão aí, é um fato. Ainda não sabemos se eles têm um impacto toxicológico nos tecidos. O Serviço de Assessoria Científica da União Europeia está trabalhando em um parecer que será publicado no final do ano.

P. Os medos infundados sobre os alimentos estão aumentando?

R. Sim, há preocupação nos cidadãos. Pensam: como é possível que a urina do meu filho tenha glifosato? Nós dizemos a eles: a concentração é tão baixa que não há risco. As pessoas respondem: mas eu não quero que a urina dos meus filhos tenha glifosato. Isso nos leva a outra questão: que tipo de agricultura queremos? Queremos pesticidas ou não? Se queremos, onde estão os riscos e quem se beneficia com isso? É uma discussão política. Não é sobre ciência, e sim sobre valores, sobre economia. Não deveríamos misturá-la com a ciência baseada em evidências. Além disso, há outro aspecto. O alimento já não se produz no campo do vizinho. Vem da Nova Zelândia, do Chile, do Canadá. A complexidade das cadeias de abastecimento impossibilita o controle absoluto. Não sabemos de onde vem a comida e temos de confiar em uma maquinaria complexa de processamento de alimentos. No final, se queremos comer temos de confiar. Isso faz com que as pessoas se sintam inseguras.

P. Como se pode devolver-lhes a confiança?

R. A indústria perdeu a confiança dos consumidores. A indústria alimentícia também tem um problema de reputação. Recordemos o caso da carne de cavalo, não era perigoso para a saúde, e sim um engano. E aí temos de perguntar a nós mesmos: precisamos de morangos da América do Sul, de kiwis da Nova Zelândia, de todas as frutas e verduras possíveis do mundo durante todo o ano? Talvez pudéssemos voltar a regionalizar a produção agrícola. A regionalização tem selos de qualidade, tratamento animal adequado, etc., e a indústria está tentando recuperar a confiança através desse tipo de selos de garantia

P. Serão necessários os transgênicos para alimentar 10 bilhões de pessoas?

R. Eu acredito que se fizermos bons programas para evitar as perdas depois das más colheitas, evitarmos o desperdício de alimentos no chamado mundo desenvolvido e trocarmos nossos hábitos alimentares, poderemos chegar muito longe sem transgênicos. Talvez haja aplicações específicas em casos de secas ou resistência, embora eu não veja sua utilidade atualmente na Europa.

P. Como evitar o desperdício de tanta comida, principalmente nos supermercados?

R. É uma questão de atitude, de fazer melhores planos e de mudar nosso comportamento. Na fazenda onde cresci, nunca se jogava fora um pedaço de pão. Minha mãe considerava isso um pecado. Para as pessoas que viviam na Europa depois da Segunda Guerra Mundial, a comida tinha muito mais valor. Por que não tem agora? Trata-se de educação, de fazer com que as pessoas conheçam o problema. Não é que a forma em que vivemos hoje em dia torne impossível não desperdiçar comida. Em relação às grandes superfícies, há leis. Na França, os supermercados são obrigados a doar os alimentos que vão vencer a bancos de comida para que sejam aproveitados. Não tem sentido mandá-los à África Subsaariana, isso não funcionaria, e na Europa temos muita gente com poucos recursos: 23% dos europeus vivem no limite da pobreza.

P. Toda a agricultura europeia poderia ser orgânica?

R. Não acredito que possamos substituir em 100% a agricultura convencional, mas em alguns países [a agricultura orgânica] chega a 20% e acredito que seria possível chegar a 30%. Quando instituições como hospitais e escolas começam a comprar orgânicos, isso faz uma grande diferença.

P. Qual é a gravidade da epidemia de Xylella Fastidiosa, o “ebola das oliveiras”?

R. Provavelmente a Xylella chegou a bordo de plantas de café trazidas da América. É um grande problema para as oliveiras em Puglia, Itália. Também chegou à Córsega, às Baleares, a Alicante, a Madri… está se transformando em um problema ainda maior. Essa praga tem mais de 500 plantas hospedeiras e há insetos que expandem a doença. As oliveiras têm um valor muito alto, não só econômico, mas também cultural, por isso é muito difícil arrancá-las, as pessoas resistem, o que é muito compreensível do ponto de vista humano, mas favorece a transmissão da doença. É uma consequência direta do comércio global. Temos de vigiar mais as fronteiras, fazer mais pesquisas, mas a UE deixou de lado a pesquisa sobre segurança alimentar. Esperamos que no próximo orçamento haja dinheiro para estudos agrícolas e alimentares.

P. Quais outros agentes patogênicos são particularmente preocupantes?

R. A peste suína africana. Ela entrou na UE em 2014 e já está em nove países: Lituânia, Letônia, Estônia, República Checa, Romênia, Hungria, Bulgária e Bélgica. A doença pulou mil quilômetros de repente, dos países bálticos até a Bélgica, provavelmente porque alguém jogou pela janela do carro um pedaço de alimento contaminado e depois os javalis se infectaram. É um problema enorme porque a febre poderia chegar aos países com as maiores criações de suínos, como Espanha, França, Alemanha, Holanda…

P. Os políticos dão o devido valor às evidências científicas?

R. Em geral, sim. Em seus 15 anos de vida, a EFSA publicou 6.000 opiniões científicas para a EU, e 99,9% de todas elas foram levadas em conta pelos legisladores e governantes europeus. Na Europa, a política baseada na evidência é um pilar importante, principalmente em segurança alimentar. Mas há motivos para preocupação, como as vacinas. Na França, 40% da população pensa que as vacinas têm um efeito tóxico, é um desastre. Achar que a evidência científica é apenas uma opinião a mais é muito perigoso. Se questionarmos o método científico, voltaremos para a Idade Média.

“NINGUÉM DEVE TEMER O GLIFOSATO SE ELE FOR BEM USADO”
P. O que se pode dizer aos consumidores sobre o glifosato?

R. Podemos dizer a eles que se for bem usado, ninguém terá nada a temer. Houve uma discussão sobre se é cancerígeno ou não. A Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Câncer, vinculada à ONU, concluiu que era cancerígeno, uma opinião contrária à da EFSA. Mas todas as agências regulatórias do mundo concluíram o mesmo que a EFSA. Até o comitê especial da ONU que lida com resíduos de pesticidas chegou à mesma conclusão.

P. Como podemos ter certeza de que o glifosato é bem usado?

R. Em nível europeu, aprova-se a substância ativa, neste caso o glifosato. Depois, cada país aprova o produto final, que pode ser glifosato mais outros compostos, como estabilizadores, por exemplo. São os países membros que têm a responsabilidade de estudar esses compostos, porque podem ser mais perigosos do que a substância ativa. Alguns dos efeitos descritos nos estudos que a IARC analisou podiam se dever a estes outros compostos, como destacamos em nossa opinião. Como a taloamina, que pode ser mais tóxica que o glifosato. Os países têm grande responsabilidade nesse aspecto. Na França será proibida a venda de glifosato aos consumidores em supermercados, por exemplo. Se você quiser o produto, precisará de uma licença.

P. Sente que a indústria pressiona a EFSA?

R. Não.

P. Mas os estudos da EFSA são financiados pela indústria

R. A lei europeia diz que a organização que deseja que seja aprovado um novo produto é responsável por fazer estudos que permitam aos peritos analisar sua segurança. Também está determinado o tipo de estudos que têm de ser feitos, não podem ser os que eles queiram. Na EFSA, às vezes, fazemos nossas próprias estatísticas usando os dados brutos da indústria. Isso também é feito com os cosméticos e os medicamentos, não é específico para os alimentos. É o sistema geral, e acredito que seja muito confiável.

Entrevista El País