As condições de mercado, o adequado cumprimento de protocolos sanitários e uma saudável relação diplomática entre Brasil e China abrem espaço para a revisão do acordo bilateral entre ambos os países, relacionado à exportação de carne bovina em caso de identificação de encefalopatia espongiforme bovina (EEB), doença conhecida como “mal da vaca louca”. A avaliação de que o cenário favorece uma revisão desse protocolo é de fontes do setor produtivo e de analistas de mercado ouvidos pelo Broadcast Agro. Demanda que, inclusive, deve ser levada pelo governo Lula em sua visita à China, programada para o fim deste mês.
As exportações de carne bovina brasileira ao país asiático seguem interrompidas desde a detecção, em fevereiro, no Pará, de um caso isolado e atípico de EEB – ou seja, que surgiu de forma natural no organismo do bovino e não é transmissível ao ser humano e nem ao rebanho. Cumprindo o protocolo sanitário, o Brasil suspendeu voluntariamente as exportações da proteína para os chineses e agora aguarda a liberação do país asiático para a retomada dos embarques para lá.
Este caso reacendeu a discussão no setor produtivo sobre a atualização dos termos acordados, já que, em setembro de 2021, dois casos, também atípicos, de vaca louca, um em Minas Gerais e outro em Mato Grosso, provocaram a suspensão por pouco mais de três meses das exportações de carne bovina brasileira à China. E, agora, não se sabe quando os chineses vão liberar novamente as compras.
Um protocolo bilateral assinado em 2015 por Brasil e China prevê, de fato, a suspensão imediata e voluntária das exportações da carne bovina brasileira em caso de identificação de EEB, mesmo sendo atípico, e exige a presença de uma delegação técnica do Ministério da Agricultura brasileiro na China para “discutir as condições para prosseguir” com os embarques da proteína animal. Segundo o documento, diante do caso, a Administração Geral de Supervisão de Qualidade, Inspeção e Quarentena da República Popular da China (AQSIQ) deve reavaliar o status de risco do Brasil e se vai retomar a importação da proteína – sem nenhum prazo pré-estipulado, porém.
Diante disso, há duas sugestões propostas pelo setor produtivo para a construção de um novo protocolo. A primeira é a manutenção das exportações da carne bovina para lá até o resultado de tipificação da doença. A segunda é a suspensão do autoembargo, sem necessidade do aval chinês, assim que o exame da Organização Mundial da Saúde Animal (OMSA) comprovar a que se trata de caso atípico, e não clássico da doença – o caso clássico é quando há contaminação do bovino por fatores externos, como ingestão de ração contaminada.
Para o coordenador do Insper Agro Global, Marcos Jank, há espaço para que o protocolo seja revisto, tanto por parte do mercado quanto pela via diplomática. Quanto aos fundamentos de mercado que poderiam facilitar a retomada das exportações em tempo mais rápido e também a possível revisão do protocolo, Jank cita a demanda crescente de carne bovina na China, que é o maior importador mundial da proteína; as dificuldades climáticas que afetam a produção da Austrália – outro grande exportador de carne bovina aos chineses -; o baixo ciclo de confinamento dos Estados Unidos – mais um grande exportador – e as taxações sobre as exportações argentinas – todos concorrentes da carne brasileira. “Isso tudo abre espaço para o Brasil e faz com que o mercado seja praticamente nosso; além disso, somos muito competitivos. Do lado diplomático, há interesse da China, neste momento, em se aproximar do novo governo e em ter uma boa relação com o Brasil por questões geopolíticas. Isso ajuda no clima para a retomada rápida do comércio de carne e na eventual revisão do protocolo”, avaliou.
Jank observa que o país asiático possui protocolos específicos com vários países e considera a exigência firmada entre Brasil e China, de interrupção imediata das exportações em caso de EEB, uma decisão “dura”. “Tivemos seis casos isolados nos últimos anos. Cada vez que se fecha o mercado é um risco grande e deixa o poder regulador da reabertura para o governo chinês, com enorme impacto, porque a China compra 55% da carne bovina do País. Precisamos, pelo menos, colocar o assunto à mesa para discussão”, diz.
A Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), a Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat) e a Associação Nacional da Pecuária Intensiva (Assocon) endossam o argumento e pedem a revisão do protocolo. Para o diretor-presidente da Acrimat, Oswaldo Pereira Ribeiro Júnior, a suspensão é reflexo de um “acordo mal redigido”, que não fez a diferenciação da tipicidade da doença.
A enfermidade atípica não causa nenhum prejuízo à saúde humana nem ao rebanho, já que se desenvolve apenas no animal doente e não é contagiosa e, portanto, não oferece risco. “As suspensões provocam um caos econômico em toda a cadeia. No episódio anterior, em 2021, quando ocorreu situação semelhante, tivemos quase cem dias para retomar as exportações, com prejuízos incalculáveis para o setor”, afirmou.
Na mesma linha, a Sociedade Rural Brasileira (SRB) apontou que o acordo não é adequado às demandas do setor produtivo e do comércio internacional. “Faz-se necessária uma modernização deste protocolo comercial, estabelecendo um trâmite simplificado em casos atípicos da doença, atuando regionalmente e evitando embargos desnecessários e prejuízos para ambos os países”, disse a SRB, em nota.
Em entrevista no início de março, o CEO da Marfrig, Rui Mendonça, responsável por administrar um dos maiores frigoríficos do País, apontou que o novo governo tem uma “excelente relação” com o país asiático e que a visita do presidente Lula à China, prevista para o fim deste mês, deverá garantir a rediscussão do protocolo. “O acordo deve ser mudado para que os embarques não deixem de acontecer quando há registro da doença, mas sim quando se trata do caso da enfermidade clássica. Este não é um dos melhores acordos. Entendemos que não há necessidade de ocorrerem essas suspensões”, pontuou, na época.
Mendonça destacou que, até a missão de Lula à China, os embarques da proteína vermelha ao maior parceiro comercial do Brasil já deverão ter sido retomados. “Devem ser discutidos também a abertura do mercado chinês a novos produtos, como carne com osso e miúdos”, disse.
Fonte do governo que acompanha as tratativas entre Brasil e China afirma que o foco das ações ministeriais está concentrado, no momento, na retomada do mercado, em virtude do elevado prejuízo financeiro das interrupções das exportações. “Não dá para, no meio de uma crise, mudar o protocolo. Quando foi assinado, só podia ser desta forma e todos concordaram. Vamos tentar mudar o protocolo, mas primeiro há uma questão emergencial para ser resolvida com impacto enorme na balança comercial”, disse o interlocutor. De acordo com ele, já há o pedido para renegociação dos termos entre os países com a contribuição do Ministério de Relações Exteriores (MRE).
Recentemente, em entrevista ao Broadcast Agro, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, disse que considera possível avançar na exigência atual, mas ponderou que a revisão não será a pauta principal neste momento. “A revisão desse protocolo se baseia em confiança e em credibilidade, por isso temos tanta preocupação com a transparência, com a credibilidade das informações e a boa diplomacia para que, a partir disso, possamos discutir um protocolo que não se suspendam imediatamente as exportações com um caso isolado, e possamos ter procedimentos menos danoso ao mercado. Mas, por ora, vamos cumprir todos”, afirmou o ministro.
Um ex-adido agrícola do Brasil na China observa que o Brasil busca rever o protocolo tão logo após a assinatura do mesmo. “O fato de todas as informações terem sido dadas com agilidade, a celeridade do ministério em notificar a China e o cumprimento protocolar e técnico dos termos contribuem para o pedido de revisão”, afirmou o diplomata.
Desempenho das exportações – Quanto aos possíveis prejuízos que o País pode ter com a suspensão das exportações de carne bovina para a China, vale lembrar que, em 2021, quando o autoembargo perdurou por pouco mais de 100 dias, o Brasil registrou embarques 7% menores em volume ante 2020, somando 1,8 milhão de toneladas em 2021, mas receita 9% maior, com US$ 9,236 bilhões, favorecida pelo câmbio e pelo preço mais alto da carne bovina nos mercados internacionais.
Já no primeiro bimestre de 2023, com o embargo valendo a partir de 23 de fevereiro, o faturamento com exportações de carne bovina do Brasil ainda havia sido pouco afetado, com redução de apenas 1% em volume, para 336.102 toneladas, em relação a janeiro/fevereiro de 2022. Ainda em janeiro/fevereiro de 2023, o Brasil exportou o equivalente a US$ 1,772 bilhão, 13% menos do que igual período do ano passado, tendo em vista a queda de preços da carne bovina no mercado externo, de 21,8%, para US$ 4.869 por tonelada, conforme cálculos da Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), com base em dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC).
Na primeira semana de março, mesmo com a suspensão, as exportações brasileiras de carne bovina seguem aceleradas. Nesse período, o Brasil exportou, segundo dados preliminares da Secex, 67.427 toneladas de carne bovina fresca, refrigerada ou congelada, com média diária de 8.428 toneladas. Este volume é 9,6% mais alto do que o verificado em igual mês do ano passado, quando a média foi de 7.687 toneladas por dia. O faturamento até agora foi de US$ 328,35 milhões. Mas o valor de US$ 4,86 mil/tonelada é 17,6% mais baixo do que os US$ 5,90 mil/tonelada de um ano antes.